Uma promessa cumprida

De Andy Clark. Original aqui.

"Uma nave se aproxima, Mestre!" O grasnado rompeu a concentração de Amhot assim como a queda de uma pedra romperia uma superfície aquosa. O feiticeiro abriu os olhos com um suspiro. Permitiu que as correntes de energia psíquica captadas se dispersassem, libertando-as de volta ao fluxo do oceano infinito.


"Tharkk, já conversamos sobre isso", disse enquanto se erguia. Os atuadores em sua armadura turquesa e dourada rangeram com os movimentos, e sua capa esvoaçou, cintilando em inúmeros tons como plumas de uma ave exótica. Olhou para Tharkk, parado à porta da câmara de meditação; o bico do tzaangor estava entreaberto e seus olhos dourados, arregalados em uma expressão que Amhot aprendera ser de constrangimento.

"Perdão... Mestre..."

"Se você interromper meu transe sem o ritual adequado, os resultados podem ser catastróficos", disse Amhot. "O poder que meu senhor Magnus captou neste reino está além da compreensão. Hoje eu manipulava forças mais simples, fáceis de pacificar e dissipar. Se eu estivesse canalizando energias mais complexas...", e deixou a frase por terminar. Amhot há muito aprendera que ao lidar com os mundanos, uma boa ameaça em aberto funcionava muito melhor do que tentar explicar as especificidades de seu ofício.

Mesmo no reino do Rei Escarlate não podemos escapar das garras da ignorância e da superstição, pensou, amargurado.

Tharkk caiu de joelhos e pressionou seu rosto bestial no chão. Emitia um ruído contínuo que Amhot sabia ser uma demonstração de sofrimento, ou medo.

"Eu blasfemei! Eu me penitenciarei por isso!" Crocitou.
O feiticeiro atravessou a câmara com poucos passos e suspendeu gentilmente o bico de Tharkk com ponta de seu cajado.

"Não há necessidade disso", disse, tentando não demonstrar impaciência. "Você falou de uma nave, Tharkk?"

"Sim, mestre. Uma nave vem vindo!" O tzaangor estremeceu e suas vestes azuis e brancas ressoaram sobre seu corpo aviário. "O Acólito Sharhra contatou o capitão, assim que atracaram. Os Rubricae estão vigiando. Os passageiros aguardam sua presença".

Amhot respirou fundo, e assentiu com a cabeça.

"Novas remessas? Estão atrasados. As previsões de Thastep indicavam que esta nave deveria ter chegado dias atrás. A menos que esta nave em questão esteja perdida, e estes sejam novos convidados... O empíreo é imprevisível, Tharkk. Mal conseguimos seu fluxo inconstante".

"Sim, Mestre", disse Tharkk, mais por reverência do que por entendimento.

"Não importa, vamos recebê-los". disse o feiticeiro, deixando o recinto, acompanhado por seu servo. Há meses que transitava pelos salões e corredores de sua torre privativa, podia fazê-lo com os olhos vendados. Entretanto, procurou se ater a cada detalhe. Sentiu a textura rude da alvenaria e o toque frio e aveludado das colunas de mármore branco. Identificou os ecos de suas pegadas perdendo-se nos confins da fortaleza. Sentiu os cheiros de cada produto químico, gota de suor e vapores de incenso perdidos na atmosfera artificial; e permitiu que eles o iluminassem da maneira com que o Transformador de Caminhos julgava adequado. Assim era feito no Culto do Conhecimento: haviam segredos em todas as coisas, e sabedoria a ser descoberta a cada momento; bastava abrir os olhos e vê-los.

Mas nossos inimigos não veem, pensou, com um traço de raiva. Não conseguem. Sua ignorância é tamanha que lhes é tão natural quanto a respiração. Por isso iremos derrotá-los no final. Por isso seus indivíduos mais talentosos buscam nossos auspícios.

Quando alcançou um santuário de descompressão, já tinha reunido um séquito de tzaangor e cultistas mascarados, munidos de automáticas e adagas curvadas. Muitos exibiam o que ficaria conhecida posteriormente como a Marca do Ciclope; tinham arrancado o olho direito, como prova de devoção ao Rei Escarlate. Amhot achava a prática desprezível, mas reconhecia a dedicação necessária para tanto. O Rei Escarlate representava esperança, ou algo similar, condizente com aqueles tempos sombrios.

Dois acólitos se apressaram em ativar os controles do terminal. Fizeram preces ao espírito da máquina enquanto pressionavam as teclas rúnicas e ajustavam frequências. Com um chiado e um jato de ar frio, a porta do santuário se abriu.

O feiticeiro adentrou o santuário, acompanhado de sua escolta. Viu através do painel de blindavidro um longo túnel que se projetava além do asteroide, formando uma doca natural. Abria-se para o vazio, revelando as revoluções estelares das tantas nebulosas do Golfo Prosperino. A sombra da torre de Amhot projetava-se ao longo do túnel graças a luz da Estrela de Carmoch, fulgurante à sua retaguarda. 

Observou o movimento dos cultistas, e os mesmos acólitos passaram a ativar novamente os controles, a fim de fechar a primeira porta, e expurgar dali os espíritos do ar, do som e da matéria. Nenhum deles o olhou de volta. Nenhum demonstrou nervosismo.

Confiam completamente em mim, pensou, surpreendentemente desconfortável. Havia um traço de escravidão naquilo, e os Thousand Sons não eram escravistas. Que padrões identificarei em seus corpos flutuantes? Quais conhecimentos vislumbrarei quando testemunhar a extinção de suas centelhas vitais?

Amhot afastou aqueles pensamentos um tanto chocado. Muitos de seus irmãos perderam a sanidade trilhando aqueles caminhos de iluminação. Ele não se juntaria àquelas almas perdidas.

Ergueu o cajado e entoou uma série de sílabas complexas que pareciam se transformar, e repeti-la até que seus ecos preenchessem a câmara. Quando os espíritos do ar gritaram ao longe no vazio, a magia de Amhot o envolvia, bem como aos seus servos em um halo de realidade alterada. As portas exteriores se abriram como as gargantas de um ork, e o ar remanescente escapou para o espaço. O frio retalhador e a ausência de ar invadiram e conquistaram para si o santuário. O feiticeiro e seus acólitos continuaram ilesos.

"Vamos saudar os recém-chegados", disse, avançou pelo túnel. Seus seguidores o acompanharam, tomando cuidado de permanecer sob a égide do feitiço, e não permitiram que o temor e o fascínio provocado pelo vazio os distraíssem. O feiticeiro sorriu satisfeito. Passaria dias imerso em estudos do cosmo, caso se permitisse fazê-lo; já tinha o feito outras vezes, alegrou-se em saber que seus acólitos, embora mortais, tinham autocontrole para evitar tais encantos.

Por um momento permitiu-se olhar para trás e observar a torre para o qual fora designado quando o Rei Escarlate iniciou seu projeto. Alta e retorcida, erguida contra o céu cintilante, como se envolta por uma armadura azul coral. Chamas etéreas ardiam em seu pináculo, em uma profusão de verdes, azuis, púrpuras e amarelos cauterizantes.

Em seguida, voltou a observar os transportes recém-chegado mais adiante, ancorado ao túnel por pesadas correntes e tubulações. Estava feliz pela chegada deles, ainda que sentisse a ansiedade da escolha pressionar o seu peito. Após subir pela rampa descida por um dos transportes, esperou um momento para analisar a nave, uma velha fragata mercante. O ultrapassado modelo Imperial tinha desaparecido sob tantos reparos, instalações improvisadas e danos de combate.

Ela mudou, pois todas as coisas devem mudar.

Bateu o cajado contra a porta exterior da nave. Nove vezes, embora a porta estivesse aberta desde a primeira batida.

Amhot desfez sua magia quando o santuário de descompressão cumpriu seu propósito. Sentiu o ar abafado e os aromas de uma nave habituada à distorção. A porta interna se abriu, revelando Ashpharim Dheyl, acompanhado por seu próprio séquito. Assim como a nave em que estavam, ele também tinha se transformado.

"Salvador!", disse Amhot, com um sorriso irônico.

"Mestre", respondeu Dheyl ao se curvar, em suas vestes azuis e amuleto brilhante.


"Mais uma vez você guiou outro grupo de iniciados até o reino do Rei Escarlate", disse Amhot. "Você tem minha gratidão. Vêm em número auspicioso?"

"O destino provém, Mestre", respondeu Dheyl, o duro sorriso sob a barba grisalha. Seu único olho encontrou os de seu mestre e não hesitaram. "São dez, como o Primarca previu. Sempre uma dezena quando os trazemos às torres".

"Eles... evoluíram?", indagou Amhot.

"Certamente, Mestre, ou morreram tentando". Amhot viu a sombra de algo desagradável na expressão de seu pupilo, e imaginou que horrores aqueles psykers libertaram ou enfrentaram ao longo da viagem. Alcançar os domínios de Magnus com vida era um feito improvável, mas surpreendentemente quase todos os peregrinos o fizeram, chegando quase sempre em dezena, ou em múltiplos de uma.

Auspicioso, pensou, e sentiu o peso em seu peito aumentar. Não gostou disso.

"Onde estão?", perguntou o feiticeiro. O pupilo fez uma reverência e e apontou para uma escotilha próxima, de onde escapava uma luz escarlate.

"Acompanhe-me se for sua vontade, Mestre", disse, tomando a dianteira na direção da câmara adiante. Amhot liderou sua comitiva, e como previa, sua aparição arrancou suspiros de medo e surpresa dos peregrinos.

Haviam dez deles, em duas fileiras sob o brilho carmesim das velas alquímicas e selos sagrados. Todos vestiam robes azuis e um bracelete dourado em cada pulso. Observavam-no com seu olho esquerdo, pois o direito dera lugar a marca da lâmina do Salvador. Homens e mulheres, espécimes desnutridas e esfarrapadas, como a maioria dos cidadãos do Imperium, mas era possível sentir o poder bruto dentro de cada um deles, alimentado pelo medo e pela ânsia em demonstrar o próprio valor.

"Sejam bem vindos ao reino do Rei Escarlate", disse, de braços abertos. Vocês são o joio do trigo, o próximo passo no caminho da ascensão humana. Meu Primarca e senhor reconhece seu esforço, seu poder e seu valor, assim como eu".

O feiticeiro os observou relaxar um pouco, e sentiu uma tristeza genuína pelo que havia de vir. Seus olhos percorreram por seus rostos, muito deles jovens, embora marcados pelas linhas do sofrimento. Para terem chegado até ali, sua força era inquestionável. Aquela, uma telepata, pensou, olhando para uma jovem com a compleição de uma operária. Talvez esteja tentando sondar minhas intenções. Aquele é um bestial... o outro um psicocinético... bem poderoso... e você... ora, isso é raro...

Quem seria?, perguntou-se. Era chegada a hora do destino responder-lhe.

"Lamento que haja um último teste, antes que o Rei Escarlate possa dar-lhes refúgio", disse Amhot, vendo-os retomarem o nervosismo. Suas expressões estavam preocupadas; sabiam o quanto a galáxia podia ser cruel, e isso era bom. Magnus não precisava de tolos ou sonhadores. "Existem dez de vocês, mas apenas nove podem cruzar as fronteiras deste lugar. O décimo não irá além. É preciso um sacrifício para proteger este santuário. Todos devem ofertar a própria carne, sangue, os próprios dons se desejam ser parte do que o Senhor Magnus deseja construir. Digam-me agora. Quem dentre vós se entrega em sacrifício? Quem cairá, para que seus companheiros possam voar?"

Eles se inquietaram. Olhares se cruzaram, houve irritação. Algumas expressões de resignação, e para esses poucos corajosos, o feiticeiro reservou um quinhão maior de respeito.

Por um instante, pensou que a jovem telepata fosse adiante. Ela olhou para o rapaz alto ao seu lado, engoliu seco, e se preparou para falar.

Mas ele foi mais rápido, e quando o fez, Amholt sentiu o poder do jovem se agitar. Um invocador. Um canalizador de demônios. Sim, você é raro, e poderoso o bastante para meus propósitos. O destino provém...

"Leve-me", disse o invocador, dando um passo à frente.

"Não, Cheng!", disse a garota, agarrando sua manga. Cheng virou-se e soltou-se gentilmente.

"Você já se sacrificou o bastante, Sia", disse, encarando a cicatriz da moça, então desviou o olhar. "Eu...Você viu o que meus dons fazem. Não posso suportar mais os pesadelos, e esses covardes não vão entregar suas vidas para o Rei Escarlate" - Cheng encarou os demais peregrinos; alguns o encararam de volta, outros desviaram o olhar. "Não deixarei você cair quando estamos tão perto da salvação, não quando posso fazer isto".

Amhot sentiu os fios do destino se entrelaçando naquele momento. Quase podia ver sua luz dourada iluminando os caminhos que aqueles homens e mulheres trilhariam dali em diante.

"Você não pode, Cheng", ela disse, mas Amhot adiantou-se e gentilmente colocou uma mão no ombro do rapaz.

"Ele pode, e ele vai", disse o feiticeiro. Sabia que o destino de Cheng estava selado desde o momento em que embarcaram com seu Salvador. A garota engoliu o choro quando Dheyl os conduziu de volta para suas câmaras de meditação.

Amhot olhou para seu sacrifício e viu medo, tristeza e determinação no olhar do garoto. Mas também havia paz, e o feiticeiro gostou disso.

"Faça valer a pena", disse o garoto quando Amhot sacou a adaga e suas palavras fizeram-na arder.

"Magnus, o Vermelho fará cada sacrifício valer a pena. Por seu sangue, pelo sangue daqueles iguais a você, a iluminação virá. As sentinelas das almas continuarão ardendo por aqueles que sacrificamos.

"Isso é bom", disse Cheng, fechando os olhos.

Assim espero, pensou o feiticeiro, guardando a adaga.

Minutos depois, a nave de Dheyl soltou as âncoras e retraiu os cabos de abastecimento. Amhot assistiu o transporte voltando-se para a extremidade do túnel e o espaço aberto além dele. Voltou sua proa para as constelações que indicavam o reino do Rei Escarlate, acionou os motores e partiu. Naquele momento, os olhos do feiticeiro se focaram nas novas chamas azuis e verdes tremulando no farol no alto de sua torre.

Magnus fará cada sacrifício valer a pena, pensou novamente, observando a sentinela das almas brilhar e arder, um de vários faróis nos confins enfeitiçados que se espalham entre as estrelas. Todos faremos.

O arco dos Thousand Sons é um dos arcos mais importantes da Horus Heresy, justamente porque a legião costuma lidar com os mistérios mais insondáveis da galáxia. Em sua busca pela iluminação, Magnus, o Vermelho, acaba cruzando várias fronteiras morais, até condenar a si mesmo e os seus.

Tais questões começam a ser respondidas através do A Thousand Sons, o primeiro título do arco Thousand Sons-Space Wolves. Prospero Burns, o próximo título, revela uma das grandes forças da série - acontecimentos descritos sob diferentes perspectivas, ambas verdadeiras.

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