Sanguíneo

De Dirk Wehner. Original aqui.

Dizem que um Space Marine não conhece o medo.

O Irmão Achilleo pensou nisto ao ajoelhar na lama, sob pancadas de chuva que corroíam sua armadura dourada. Pensou enquanto respirava pesadamente, não só pelos ferimentos sofridos, mas porque seus pulmões estavam cheios de esporos e toxinas alienígenas. Era muito para suportar, mesmo com seu metabolismo avançado. 

Sabendo que morreria, pensou sobre o medo. Também sabia que os xenos o observavam nas sombras. Milhares de olhos reluzindo sob as as colunas partidas da cathedrum imperial, fixados no Sanguinary Guard; um único propósito. 

A Guarda Sanguinária... um campeão em comparação aos seus irmãos astartes, assim como estes o são em comparação aos homens comuns. Achilleo testemunhara as duas guerras em Armageddon, e assistira a morte do grande Erasmus Tycho. Combateu a traiçoeira Alpha Legion nas profundezas de Sinfall, e derramou sangue contra os Necron em Galterian Prime. Estava lá quando os Tyranids chegaram ao sistema Baal, perdeu a esperança, e a reaviu quando o Lorde Guilliman presenteou os Blood Angels com seus irmãos Primaris

Mesmo assim, lá estava ele, de joelhos. Centenas de anos de serviço prestes a terminar. Seu jump pack não funcionava há dias; suas asas magníficas estavam na sarjeta perto dele, retalhadas e cobertas de sangue dos xenos. Sua lâmina escarlate, forjada há milhares de anos em Baal Secundus, com a ponta partida. Seu bolter, a arma padrão de um Space Marine, sem munição, apenas peso morto. Rachaduras por toda a armadura modificada, por onde corria seu sangue envenenado.

Era o fim. As criaturas fechavam o cerco, prontas para matar. Podia ouvir a chuva correndo sobre as milhares de carapaças, e pingando por suas presas. Achilleo pensou no medo e fechou os olhos. 

Nuvens púrpuras escureciam o céu de Calata VI. Outrora um paraíso imperial, agora em seus momentos finais. Fora um lugar pacífico, um oásis em meio à loucura - para aqueles que pudessem pagar pela viagem. Quando o enxame chegou, o planeta tornou-se um matadouro; suas defesas exterminadas em poucos dias, e os parques e jardins bem cuidados foram tomados por criaturas medonhas. Os Blood Angels responderam aos pedidos de ajuda, embora já estivessem enfraquecidos, tendo combatido Tyranids em diversos outros frontes. Também não podiam deter a torrente de horrores que se espalhava por aquele mundo verdejante. 

Vários irmãos tombaram, mas Achilleo e seus homens resistiram; eram tudo que restava da força de ataque dos Blood Angels - irmão Gianluca, irmão Vasco, e ele. Três membros da Sanguinary Guard, os melhores guerreiros que o capítulo podia oferecer. Eles não desistiriam. 

"Este mundo está morrendo, e morreremos com ele, irmãos". Gianluca flexionou suas manoplas de força, observando as nuvens de poeira ao longe. Luzes verdes iluminavam o horizonte ocasionalmente, projetando sombras de criaturas aladas, e seus construtos, drenando cada átomo da força vital do planeta, a fim de alimentar os organismos titânicos em órbita. 

"Decerto", respondeu Achilleo, "mas cada criatura que exterminá-los vai pesar para o enxame. Assim como cada cidadão que pudermos resgatar". 

Gianluca riu. Ele não tinha. Ele não tinha o temperamento de um guerreiro da Sanguinary Guard. "Olhe em volta, irmão. Não há mais cidadãos para evacuar. Apenas nós". 

"Contatos múltiplos!", disse Vasco, lacônico, interrompendo. "Estão chegando ao cathedrum ao sul". Ele nos olhou, sem demonstrar emoção. Não precisava. "Por múltiplos, quero dizer milhares. Presumo que sejam devoradores". 

Achilleo meneou a cabeça. Era isso então. "Quanto tempo?" 

"Menos de uma hora". 

Gianluca flexionou as manoplas novamente e seus mecanismos rangeram, cobertos de sangue e vísceras das batalhas interruptas. "Certo. Devoradores", disse. "Sempre quis matar um desses haruspexes". 

Vasco estava prestes a responder quando formas imergiram das águas turvas de uma fonte próxima. Pinças saltaram e agarraram os Space Marines pelos braços. Tentáculos se enrolaram em suas cabeças e tentaram penetrar em todas as suas aberturas. Tudo em uma fração de segundo. 

"Lictor!". Gianluca correu para ajudar seu irmão, mas Vasco não reagia mais. O Lictor largou o cadáver do guerreiro e sibilou ao avistar Gianluca, erguendo suas pinças, que abriam e fechavam, ansiosas. 

Achilleo atacou o flanco da besta, virando-a para cima. A espada caiu em um golpe devastador, mas a criatura foi mais rápida e desviou, atacando-o com uma das garras. A quitina afiada cortou fundo o peitoral do guerreiro, e lançou-o longe. 

Enquanto Achilleo se chocava contra a fonte, o lictor se virou para Gianluca; suas pinças golpearam a esmo, pois Gianluca utilizara a última carga em seu jump pack para saltar. O sanguinary guard cerrara os punhos, rugindo enquanto caia sobre o tyranid. Como um cometa dourado, ele se chocara contra a besta, e a força do impacto por um momento reverberou como um trovão distante. 

O lictor estava pronto, tendo assimilado cada um de seus movimentos do cérebro de Vasco. O xenos esquivara momentos antes que os punhos o atingissem, e o que deveria ter sido um golpe fatal atingiu o solo, deixando uma cratera enegrecida. Sibilando, a criatura agarrou Gianluca pelo jump pack e o decapitou com um golpe largo de uma de suas grandes pinças. 

Achilleo assistiu o elmo dourado de seu companheiro cair com um som abafado no chão lamacento, e rolando em sua direção. O lictor rosnou e soltou o corpo do Space Marine, que ainda bombeava sangue através do pescoço cortado. 

Em segundos, dois heróis do Imperium estavam mortos, mas ainda havia um. Achilleo pôs-se de pé, ignorando a dor em seu peito. Ergueu o bolter Angelus e fez alguns disparos, que não acertaram. A criatura ferida escapara. Achilleo então se deu conta, angustiado, que estava sozinho. Enquanto observava os corpos mutilados de seus irmãos de armas, um segundo trovão ressoara no alto. 

Seus corações palpitavam enquanto ele lutava contra a fúria emergente dentro de si. Caminhou lentamente até onde o lictor estava antes de desaparecer; um rastro de sangue xenos se estendia através da escuridão. Para o sul. "Você pagará por isso", sussurrou o Blood Angel, dirigindo-se ao local do qual suspeitava ser o refúgio da criatura. 

Meia hora depois, o guerreiro dourado atravessara um grande portão, mergulhando na escuridão do cathedrum. Não fazia diferença se era dia ou era noite; embora o teto do edifício tivesse sido destruído pelos esporos, o céu estava coberto por sombras gigantescas, que bloqueariam qualquer luz. 

Achilleo tossiu; seu ferimento não estava regenerando devidamente, e o ar estava tomado por toxinas dos Tyranids, transformando toda a matéria orgânica em algo de absorção mais fácil. O planeta morreria em questão de horas. 

Ruídos ecoaram à sua volta. Notara perto dali uma torrente de rippers rastejantes, os organismos que precediam aos devoradores. Foi ignorado pelas criaturas, unicamente ocupadas em devorar e absorver, arrancando da terra toda forma de matéria orgânica que não oferecesse resistência. Achilleo pensou em seus companheiros e engoliu em seco. Perdidos para sempre. 

Havia centenas de criaturas cercando-o, observando e esperando. Ele acreditava que Mente Mestra tentava minimizar suas baixas, enviando a única criatura que sabia exatamente como Achilleo lutava. A criatura a quem ele perseguia. Aquela que ele viera matar. 

O lictor surgiu das sombras entre colunas ornamentadas bem acima de Achilleo, tentando agarrá-lo como fizera com Vasco. Mas ele também aprendera algo. 

O guerreiro girou para aparar o golpe das pinças, e a lâmina escarlate ressoou com a força descomunal de seu golpe. Avançou e atirou, atingindo a perna esquerda do lictor. Um impacto, dois impactos, clique, clique, clique... O espírito da máquina estava exausto. 

As munições detonaram, levando consigo grandes pedaços da perna do monstro, que rosnou e se lançou contra Achilleo. Suas garras afiadas atingiram as asas que ornavam a armadura, arrancando-as com um jato de faíscas. Enquanto os dois se engalfinhavam, o marine enterrou sua lâmina no peito ferido da besta, agravando os danos provocados por seu companheiro. 

Os dois caíram, e a lâmina correu pela carne do tyranid, penetrando até sua base. O monstro ainda resistia; uma das garras arrancara o elmo de Achilleo e seus tentáculos agarraram seu rosto, rasgando-lhe a pele. 

Achilleo resistiu, tentando suspender o xenos e livrar sua arma. Golpeou o crânio do lictor com o cotovelo e com a mão livre, puxou a espada, que moveu-se, tortuosa, pelo exoesqueleto da vítima, até se libertar com uma explosão de energia, como se tivesse se partido. O lictor sibilou e libertou o guerreiro. 

"Venha, vamos terminar isso logo", gritou. 

Com passos incertos, os dois lutadores ensanguentados bateram-se novamente. Um relâmpago surgiu no céu, iluminando a cena por um milésimo de segundo. As ruínas em volta estavam tomadas por milhares de criaturas. 

Quando Achilleo e seu inimigo se chocaram, o ruído de um trovão seguiu-se ao relâmpago, e a chuva começou a cair. 

Dizem que um Space Marine não conhece o medo. 

Eles estão certos. 

Achilleo abriu os olhos. O lictor, imóvel, caído ao seu lado. Derrotado. Morto. 




Usando a lâmina quebrada como muleta, Achilleo se ergueu pela última vez. Seus lábios ensanguentados esboçavam um sorriso insolente quando as criaturas gritando de ódio, deixaram as sombras em sua direção. Seu olhar se encontrou com o de um grande Warrior tyranid, e ele sentiu no âmago de sua alma que a Mente Mestra o encarava. Se esperava vê-lo com medo, ficaria desapontada. 

Pois viu apenas escuridão. 

Com o fim iminente, Achilleo sentiu a escuridão agitando seu sangue, a fúria que contivera durante toda a vida. Em seus últimos momentos, a maldição de Sanguinius daria-lhe forças para morrer devidamente. 

O Warrior emitiu um guincho e acenou para que a horda de monstros quitinosos atacasse. Achilleo gargalhou com sua aproximação, erguendo a espada quebrada. Riu porque sabia o que seu inimigo encarava. 

Um Space Marine não conhece o medo. Os Tyranids aprenderão hoje, ou qualquer coisa próximo disso, que não terão a vitória com sua morte.

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