Um lugar melhor

De Andy Clark. Original aqui.

Cheng correu através do beco, acompanhado por Siana. A atmosfera quente e abafada, combinada com a fumaça, sufocava a respiração e fazia com que ele emitisse chiados abafados ao expirar. O beco descia entre os flancos de dois grandes santuários, cujas luzes oscilavam entre os andares superiores. Pouca luz alcançava a passagem, e enquanto avançava na escuridão, Cheng imaginou guiar Siana através de algum tipo de submundo Estígio. “O Imperador não pode nos ver aqui”, pensou, sem saber se a ideia lhe trazia conforto ou terror.

“Quanto falta?”, perguntou Siana, sussurrando.

“Você precisa mesmo me perguntar?”, respondeu, mantendo a voz baixa e seguindo entre pilhas de caixas de metal caídas.

“Cheng…” ela retrucou, num tom de censura.

“Estou mentindo? Você é melhor que isso, Sia. Melhor do que todos eles”.

A mão dela tocou seu ombro, virando-o em sua direção de forma firme, mas gentil. Ela parou bem à frente das luzes dos santuários, e sua expressão assustada quase não podia ser vista na penumbra.

“Cheng, já conversamos sobre isso. Sobre o que podemos fazer. Sobre o que aconteceu com a gente.”

“Sia-“

“Isso não é um dom!”

Cheng se encolheu diante do acesso de fúria, embora ela tivesse abafado seu tom de voz. Nas cidades-colmeia de Teschor, o medo de chamar a atenção dos Árbitros era inato.

“O que é, então?”, perguntou. “Sia, você lê pensamentos! Quem pode mentir para você? Quem agora poderá te manipular ou te trair?”

“Não é natural, disse Siana, assustada. Juntou as mãos. “É feitiçaria. Pecado. É heresia, Cheng! E isso é…”

“O que eu posso fazer?”, ele terminou a frase, em um tom amargo. “Você não consegue dizer, não é?”

“Não sabemos porque isso nos aconteceu”, ela continuou. Seus olhos estavam arregalados e reluziam na escuridão, suplicando para que ele entendesse. “A Eclesiarquia diz que estas maldições são traços de heresia! De demônios! Nós devíamos estar implorando por perdão. Devemos procurar um padre, e não… não isso.”

“Demônios, padres…”, zombou Cheng. “Histórias mirabolantes que eles contam. Você sabe o que vai nos acontecer. Eles têm uma grande fogueira nos esperando na Praça dos Penitentes, como foi com Rennj e Yaekob”.

“Rennj estava louco”, disse Siana, num tom assustado.

“E Yaekob?”, questionou Cheng. Ela sacudiu a cabeça.

“Ele procurou os padres por vontade própria e eles o queimaram”, disse Cheng, percebendo que o terror e a ira daquele dia atroz não se dissipara. Siana estava prestes a retrucar, mas ouviram um barulho abafado acima deles, ecoando por todo o beco. Entreolharam-se, assustados, pensando na mesma coisa.

Na rua após o toque de recolher. Sem autorização para este setor.

Cheng e Siana deram-se as mãos em meio à escuridão. Permaneceram um diante do outro, paralisados pelo medo; o coração de Cheng ribombando contra o peito. Apesar disso, buscou o poder que crescera em sua mente nos últimos meses. Sentiu-o, uma agitação quente e um tanto nauseante, inquieta em algum lugar entre a alma e a mente. Tentou controlá-lo, armá-lo como um revólver, mas ele era esquivo, como se tivesse vida própria, e só pôde ser encontrado conforme o desespero aumentara. A pele do rapaz formigou, como se estivesse diante de uma fornalha, e ele sentiu o sabor metálico de sangue.

“Nada”, disse Siana, abandonando a paralisia. Cheng desistiu de tentar captar suas novas habilidades, embora a inquietação permanecesse.

“Sia, você quer fazer isso tanto quanto eu. A mensagem dizia que se quisermos que o Salvador nos leve para um lugar melhor, essa seria a única opção. Hoje, nas tubulações entre os santuários nove e dez.”

“Eu quero”, sussurrou, hesitante. “Quero, mas… E se não der certo? E se nos queimarem? Somos bruxos, Cheng.”

“Não somos bruxos”, disse firmemente. “Não é nossa culpa. Não queríamos isso. Mas não vai desaparecer, e se ficarmos aqui, vão nos descobrir e nos matar. Eu não quero morrer por algo que não fiz, Sia. Nem quero que você morra.”

Eles pararam por mais um momento, encarando um ao outro. Então ela concordou com a cabeça.

“Vamos sair daqui rápido, antes que nos encontrem.”

Desceram pelo beco até perceber que as trevas os envolvia quase que totalmente, exceto por uma réstia de luz cinzenta, brilhando ao longe, acima deles. Algo se mexia ali – ruídos e cliques insetóides que incomodavam Cheng sobremaneira.

Quando começavam a temer que terminariam devorados pelas baratas, Cheng percebeu um brilho escarlate adiante. Apressou-se para alcançá-lo e percebeu que era um olho, pintado em tinta luminescente. O olho brilhava próximo a um bueiro com a tampa entreaberta.

“Aqui”, sussurrou. “Me ajuda”.

Os dois seguraram as grades de metal da tampa e a arrastaram para o lado. O ruído do metal sobre a pedra parecia ensurdecedor.

“Você primeiro”, disse Siana.

“Não, vai você”, respondeu Cheng, procurando por seu dom escondido, pois os cliques e movimentos continuavam. Ela passou por ele, localizando os degraus quase invisíveis da escada, e descendo apressadamente. Cheng a seguiu, colocando a tampa no lugar quando imergiu. O som do metal encaixando-se em seu nicho deu-lhe algum alívio.

Não durou muito.



“Cheng…” soou a voz preocupada de Siana. Ele ouviu o ruído característico de uma espingarda sendo armada. A imagem dos Árbitros veio à sua mente, espreitando as galerias em busca de mutantes.

“Desce, garoto, bem devagar”, disse uma voz rouca. Cheng relaxou um pouco. Não era a voz amplificada dos Árbitros. Desceu o mais rápido que pôde, e se aproximou de Siana. Ele podia sentir pessoas à sua volta, sentir seu cheiro e ouvir sua respiração.

“Quem são vocês?” Perguntou, em um tom forçadamente insolente. “Onde está o Salvador?”

Então ouviu um ruído mecânico; uma sensação esquisita percorreu a pele de Cheng, arrepiando-o. Mais uma vez sentiu a inquietação dentro de si, que então desapareceu.

“O Psyocculum está vermelho”, disse a voz. “São psykers, os dois”.

“Excelente”, respondeu a voz rouca. Cheng precisou cobrir o rosto com as mãos quando as luzes se acenderam. Com os olhos lacrimejando, percebeu três formas humanas apertadas naquele corredor, todos com lanternas fixas sobre o ombro esquerdo. Estavam acesas, envolvendo os dois em um círculo luminoso.

“Onde está o Salvador?”, perguntou novamente. Inconscientemente tentou ativar seu poder, e quando o fez, o dispositivo de um dos indivíduos emitiu um ruído de alerta.

“Calminha, não precisa disso”, disse a voz rouca, movendo a lanterna para outra direção. Cheng percebeu as marcas e desgastes de um uniforme. Milícia planetária, talvez? Viu que o homem tinha apenas o olho esquerdo; o outro tinha uma incisão cicatrizada no lugar.

“Temos de checar todos que vêm ao refúgio do Salvador”, disse o homem, desviando a espingarda de Cheng e Siana, tranquilizando-os. “Você sabe como os Arbs são. Sempre se espera algo sorrateiro da parte deles”.

“Não somos Árbitros”, disse Siana. “Só queremos sair desse mundo. Ir pra um lugar melhor”.

“E vão”, disse o homem com voz rouca. Voltou-se para os outros dois. “Fiquem de guarda. Se aparecerem, sabem o que fazer”.

Cheng viu um homem e uma mulher, também desertores da milícia, julgando sua aparência, e tendo apenas os olhos esquerdos.

“Venham, o Salvador já esperou demais”, disse o homem, seguindo pelo túnel. Cheng precisou se abaixar para prosseguir, e os ruídos de seu avanço foram abafados pela atmosfera claustrofóbica, com a qual se pegou lutando, uma vez que o duto não acabava.

“Estamos perto”, disse o homem, reconhecendo o pânico de Cheng.

“Talvez o homem pudesse sondar seus pensamentos”, pensou Cheng. E por isto estaria aqui.

Para seu alívio, chegaram a um lugar mais amplo, um reservatório ou algo assim. O que quer que fosse, tinha sido drenado e transformado em algum tipo de altar. Velas preenchiam o espaço com uma luz avermelhada, e runas esculpidas nas paredes e teto brilhavam com o mesmo pigmento que Cheng vira lá fora.

Dúzias de pessoas se reuniam na câmara, virando-se para Cheng e Siana quando o guia os conduziu para dentro. O jovem viu outros trabalhadores e auxiliares, e para sua surpresa, também haviam atendentes, acólitos, produtores de fungos e uma pessoa que ele podia jurar ser um jovem aristocrata, coberto por um manto pesado.

Sobre todos eles, em uma plataforma elevada e cercado por velas, o Salvador. Tinha de ser ele, pensou Cheng. Suas vestes azuis, a gargantilha dourada e o amuleto incandescente em seu peito. O rosto do homem era emoldurado por uma barba branca curta, e como os guardas, o Salvador tinha apenas um dos olhos.


“Sejam bem vindos, perdidos”, disse o Salvador assim que entraram. Sua voz era cálida e profunda, imponente, mas ao mesmo tempo, tranquilizadora. “Parabéns. Vocês deram o primeiro passo. Tranquilizai-vos, pois este é o mais difícil. De agora em diante, a luz do Rei Escarlate vos guiará.”

Cheng quis falar, talvez para agradecer, ou fazer perguntas, mas o olhar impaciente dos outros o intimidou. Ao invés disso, ele seguiu Siana até os fundos da assembleia. Quando o Salvador falou, sua mão segurou a dela.

“Eles dizem que sois hereges” – a voz do Salvador estava carregada de raiva e pesar.

“Não para nós”, pensou Cheng, com certo alívio.

“Dizem que o que podeis fazer, que os poderes que desenvolvestes, são maus. Vocês têm escondido esses dons, fugido como criminosos, encolhidos nas sombras como vermes, a salvo de autoridades que deveriam tê-los acolhido, sendo as criaturas milagrosas que são!”

Sussurros preencheram a câmara, xingamentos e palavras ressentidas de concordância.

“Vocês não são monstros, meus amigos”, continuou o Salvador, com um sorriso benevolente. “Vocês são seres evoluídos! Estão acima da mediocridade humana, e é por isso que padres e Árbitros chamam-vos de bruxos. Por isso perseguem-vos, caçam-vos… queimam-vos.”

Mais vozes irritadas, agora mais altas.

“Bastardos!”

“Queimaram Kelwyn, e ele jamais fizera algo errado!”

“Quem lhes dá o direito?”

O Salvador ergueu as mãos para silenciá-los.

“Eles vos perseguem porque sois fortes, e vossa força mostra o quanto eles são fracos! Mas não temeis, meus amados. Alguém conhece vosso verdadeiro valor. O Rei Escarlate vos conhece. O Rei Escarlate vos enxerga, e vê o futuro desta raça bendita. O Imperador e todos os seus servos podem lançar-vos nas chamas da ignorância, mas o Rei Escarlate vos trará à luz da verdade! É de vosso desejo?”

“Sim!”, vários responderam.

“Que assim seja”, disso o Salvador. “Hoje atravessaremos esses túneis até um lugar sagrado, e de lá, embarcaremos em peregrinação por vários meses. Não vos enganarei, nem todos sobreviverão; mas um lugar melhor aguarda aqueles que o fizerem, o reino do Rei Escarlate. A chance de tornar-se parte de seus maravilhosos desígnios.”

Cheng sentiu Siana apertar sua mão; ela sorriu e o coração do jovem pesou ao ver esperança no olhar da irmã. Sentiu a inquietação aumentar dentro de si, e esforçou-se para contê-la. Sairiam daquele lugar maldito, pensou, dividido entre a angústia e a esperança.

“Iremos em breve, pois o tempo é curto”, disse o Salvador, sacando uma adaga dourada de seu cinto. Encostou-a em sua têmpora, onde o olho direito um dia estivera. “Mas primeiro, há uma oferenda, uma prova de força e devoção. Vamos levá-los ao reino do Rei Escarlate, mas precisamos pagar o condutor”.

Cheng sentiu o medo em tais palavras, sentiu a ansiedade das pessoas à sua volta, e ouviu os sussurros irritados. Ele largaria a mão de Siana e protestaria, mas o olhar da moça o deteve – triste e determinado, com a convicção que jamais vira nela antes. 

“Temos de pagar por isso, Cheng”, disse ela. “Está tudo bem”.

Ela soltou sua mão, e ele observou, impotente, enquanto Siana avançava através da multidão.

“Eu pagarei o preço”, disse. O Salvador apenas sorriu.

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