O poder da crença

De Duncan Waugh. Leia o original aqui.

Renneck olhou para o horizonte vasto e luminoso de Consagração. Os edifícios cuidadosamente entalhados em arenito dos Eclesiarcas captavam a luz moribunda do ocaso, e um espectro de cores quentes se espalhava de uma estrutura a outra. Apensar do cansaço, Renneck permanecia de pé, cativado pela grandiosa visão à sua frente.

Sendo um nativo, como tantos outros trabalhadores do mundo-altar, Renneck passou a vida inteira vivendo das migalhas oferecidas pelos clérigos do Ministorum. E mesmo assim, ele conseguia aproveitar momentos como aquele, ainda que fugidios. 

Um dos inúmeros altos-falantes espalhados por todas as ruas e travessas da cidade soou uma sirene aguda, quebrando sua breve contemplação e trazendo de volta o exausto trabalhador. Caminhando pesadamente, Renneck caminhou de volta ao seu alojamento, quase lamentando o fim de suas breves horas de sono. Ao alcançar a grande escadaria, cujos degraus desapareciam na escuridão mais abaixo, ele quase podia sentir o frio arrastando-se pelos seus ossos mais uma vez. 

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Os raios quentes de sol atravessavam a tênue cortina de nuvens, fustigando os corpos suados de Renneck e dos outros, que puxavam suas respectivas polias. Lenta e continuamente ergueram a plataforma repleta de painéis blindados da lateral do prédio do Administratum até o andar no qual estavam. Os homens gemiam ruidosamente enquanto lidavam com a pesada carga, seus movimentos sincronizados após anos trabalhando lado a lado. 

Um ruído alto emanou do alto-falante no mastro do prédio quando deu sinais de vida. Algum tipo de distúrbio atmosférico estava interferindo nas transmissões há alguns dias, foi o que explicaram, e a transmissão de hinos e leituras da escritura sagrada, onipresente trilha de fundo da capital fora interrompida. 

“Naquele dia não foram os guerreiros indomáveis do Adeptus Astartes, a vontade encarnada do Deus-Imperador, nem as devotas Irmãs da Ordem de Nossa Senhora Martirizada, que provaram ser a maior força contra os hereges. Não, foram os crentes e piedosos!” A intensa pregação nos alto-falantes ecoava pelo firmamento, alcançando corações e almas daqueles que ouviam. 

“Os Santos Humildes, imbuídos com a glória do Imperador, desejando entregar-se como receptáculo de Seu poder. Porque diante dos mais terríveis dos males, ninguém pode enfrentar a luz dos verdadeiros devotos e penitentes”. Renneck sorriu ao ouvir as palavras ao longe, tendo sua disposição renovada enquanto puxava a corda com mais força, apreciando o fardo que lhe fora confiado. “E através de sua servidão, e da veneração de Sua vontade, meu irmãos, que vocês poderão ansiar pela divina providência!” 

Renneck desceu através de uma das plataformas, e suas grandes proporções aproveitaram o conforto daquele breve luxo. Seus companheiros seguiram seu exemplo, igualmente exaustos por terem erguido pilas e mais pilhas de munição durante toda a manhã. Observaram com um estranho interesse os vários soldados chegando e saindo, apressados ao ponto de não parar para ordená-los a retornar ao trabalho. O que quer que estivesse acontecendo era obviamente mais preocupante do que um punhado de trabalhadores parados e as metas do Munitorum.

Pelos rumores que circulavam os vagões de transporte, a mobilização militar estava ocorrendo em todo o planeta, embora não fosse uma grande preocupação entre as camadas mais baixas da população. Orações e oferendas continuavam, os ritos sacrados da Eclesiarquia religiosamente mantidos, e os crentes e piedosos continuavam dormindo o sono dos justos. Entretanto, as transmissões de vox foram reduzidas ao longo da semana, e os sermões diários eram frequentemente interrompidos por sons estranhos e cânticos ruidosos.

O alto-falante mais próximo voltou a funcionar, e sua presença tranquilizante surpreendeu Renneck.

“Então eles se sacrificaram nas piras da devoção. Porque nós, miseráveis e impuros, não podemos esperar por muito mais do que isso!”, dizia o pregador. “Apenas através da nossa total entrega a ele que podemos transcender nossas limitações e fraquezas. Eu vos pergunto: o que é um homem sem um mestre? O que é um devoto sem seu deus?” A voz reverberava com fervor religioso, fazendo o alto-falante falhar com a intensidade do som. “Nunca se esqueçam de que nos destrói é o que nos dá o verdadeiro propósito!”

O trabalhador sentiu os pelos de sua nuca arrepiarem no final, e percebeu reações similares entre seus colegas, que ajustavam seus uniformes e se levantavam para voltar ao trabalho. As palavras do pregador pesavam sobre ele, que divagava acerca sobre esta última – e enigmática pregação. Enquanto se punha de pé, o trabalhador não pôde evitar a preocupação que estava tomando conta de todo o seu planeta.


Cansado e sem forças, Renneck retesou os músculos das costas e ajeitou a coluna enquanto erguia o pesado saco de areia. O suor escorria pelo corpo dolorido do trabalhador, sobre seus membros que tremulavam, sobrecarregados, ante à pressão de um trabalho aparentemente incessante. Ninguém parecia saber o que estava acontecendo. Ordens conflitantes circulavam por todos os setores do Administratum. Em meio à confusão, ele e seus companheiros estavam chegando ao limite.

De repente, Renneck foi despertado de seu mal estar pelo barulho ensurdecedor de naves se aproximando. Olhou para o céu nublado a tempo de ver duas longas naves rompendo a cortina de nuvens. Quase que imediatamente, baterias hydra estacionadas nas imediações do distrito abriram fogo, tingindo o céu com seus projéteis. A despeito da salva mortífera, os inimigos seguiram seu curso, reposicionando-se antes de bombardear umas das estruturas próximas, reduzindo-a poeira e escombros. Tão rápido quanto surgiram, os bombardeiros sumiram de vista, envolvidas pelo véu plúmbeo do firmamento.

O trabalhador permaneceu parado, atordoado com os eventos ocorridos à sua frente. Quarteirões adiante, viu uma estrutura ornamentada transfigurar-se em uma nuvem de estilhaços quando veículos de assalto se lançavam sobre os pórticos e estátuas que margeavam a rua. Em instantes, suas grandes portas se abriram, vomitando monstruosos guerreiros armados em vermelho e negro, atirando incessantemente. Renneck assistiu, horrorizado, enquanto eles massacravam a despreparada milícia que tentava desesperadamente executar uma “linha de defesa ante a um ataque surpresa”.

Completamente em pânico, se voltou para a única fonte de segurança em sua vida, a orientação onipresente da Eclesiarquia. Tentando ouvir as palavras dos padres sob o tiroteio e as explosões, recordou dos ensinamentos do Ministorum, da lenda dos Santos Humildes e de como eles resistiram contra o inimigo mais sombrio.

Naquele momento, o peão se tornou firme em sua convicção, porque ninguém no Imperium podia se afirmar mais puro e fiel do que o seu povo. O Deus-Imperador, manifestando sua vontade, baniria os atacantes, e Renneck e os seus seriam os meios para aquele fim. Rapidamente após sua epifania, Renneck percebeu jatos surgindo no horionte. Seu espírito permaneceu altivo, no entanto, porque as armas deles pouco poderiam fazer contra o escudo da verdadeira fé.

Com o impacto de projéteis incendiários nos prédios à sua volta, vaporizando instantaneamente vários de seus amigos, Renneck chegou a uma amarga conclusão. Não era para ser daquela maneira. Os ensinamentos e sermões dos clérigos do Ministorum eram muito claros quanto a isso.

Caído sobre os escombros, em suas últimas forças, Renneck finalmente conseguiu escutar as palavras do pregador em meio ao caos e à morte que o circundava. A voz do padre era a mesma de sempre, mas com uma reverberação doentia, como se uma miríade de falantes diferentes estivesse tentando sobrepôr as falas uns dos outros, com ritmos e entonações distintas.

“Alegrai-vos, pobres irmãos, porque sua recompensa chegou!”. O pregador gritava e delirava, abandonado pela sanidade, suas palavras quase indecifráveis, perdidas em meio às distorções. “Ajoelhai diante de seus verdadeiros deuses, e ofertai-lhe suas almas, para que possam enriquecê-los!”

Naquele momento Renneck sabia que estava completamente perdido. O que quer que tinha descido àquele planeta já tinha espalhado a corrupção. Sua fé foi considerada insuficiente, significando que qualquer esperança de salvação estava além do alcance; enquanto dava seus últimos suspiros, o trabalhador conheceu o verdadeiro significado de desespero.

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