A dádiva da esperança

De Andy Clark. Original aqui.

O Comissário Kalun Dresk perambulou pela cela. Tiraram-lhe o sobretudo negro, o quepe alto e a pistola bolter, mas estava seguro de que sua altivez e olhar confiante destacava sua presença mesmo entre uma multidão de soldados.

Não que houvesse alguém para encará-lo de volta; tinham ido preparar-se para o ritual há quase uma hora, pelo que disseram-lhe antes de sair. Pareciam pedir desculpas por isso, como se explicar o abandono de seu posto fosse conquistar sua benevolência. Se a situação não fosse tão crítica, Dresk até se divertiria com a ideia. 

Checou seu chrono de pulso; faltavam alguns minutos para começar.

Caminhou pela cela novamente, organizando as ideias, mas não conseguia imaginar o que estava por vir.

"Deus-Imperador, perdoe minha falha", disse, quebrando o silêncio.

Mas não havia silêncio de verdade. Jamais haveria, em algum momento. Não desde que os monstros vieram. Ele podia ouvir seus guinchos e uivos distantes, suas gargalhadas e promessas profanas, trazidas pelos ventos cálidos. Caminhou até a janela gradeada, e além das muralhas da Fortaleza do Comandante legiões impuras marchavam como em pesadelos. Armas ressoavam e explodiam, lançando fogo sobre os sitiantes. Explosões em meio às hostes iluminavam suas torres de sítio e os obscenos monstros metálicos que ali espreitavam.

"Pelo menos ainda há soldados nas ameias", disse a si mesmo. "Pelo menos ainda estão lutando".

Mas por quanto tempo?

Dresk meneou a cabeça; ajoelhou, pôs as mãos na altura do peito, formando o sinal da aquila, e começou a falar gravemente. Ninguém ouviria sua confissão a não ser ele na Terra.

Como deveria ser.

"Deus-Imperador, me perdoe. Eu tentei fazê-los enxergar". Hesitou por um momento quando uma das criaturas além dos muros uivou mais alto, então continuou, impassível. Não havia muito tempo.

"Foi o cerco", disse. "O conflito, e seu desgaste, espalhando a angústia e o desespero. E o isolamento. Depois que a escuridão veio, muitos temeram serem esquecidos, ou que a Sagrada Terra pudesse ter perecido. Eu executei vários deles por estas ideias ímpias, mas os sussurros continuaram. Então... eles vieram, os arautos do Caos... os..." - ele não conseguia falar a palavra em voz alta, mesmo naquele momento.

Não era a falta de determinação, nem o medo que paralisara a língua de Dresk. Era repulsa. Ele não profanaria o ar dando voz àqueles sacrilégios.

"Eles vieram e a guerra começou. Lutamos, ó Deus-Imperador, e rezei para que te apetecesse olhar para nós e ver como lutamos!". Dresk sentiu uma pontada de orgulho ao recordar do indomável espírito humano, firme diante dos horrores, tal como nas escrituras. Sentiu seu rosto ficar carrancudo quando lembrou das baixas, das derrotas, e da lenta retirada a despeito de tudo quanto tinham feito. "Então, o cerco", disse antes de respirar profundamente.

Seu chrono sinalizou.

Dresk sentiu uma inquietação no ar, como se o ar estivesse mais denso, carregado.

O ritual devia ter começado. Ele tinha pouco tempo para fazer suas preces.


"A luta se arrastou ciclo após ciclo, estação após estação", continuou. "Nós, de coração forte, bravamente resistimos, mas os sussurros aumentaram. Os astropatas não podiam pedir ajuda ao Imperium; os soldados sussurravam e a distorção respondia. 'Fomos abandonados', diziam. Àquela altura alguns diziam abertamente que estávamos condenados, e suas vozes não podia ser silenciadas. Então vieram as manifestações, espalhando-se por nossos escalões como uma praga. Mutações e loucura, e minha pistola deu tantos sermões sobre obediência quanto os capelães. Mas o pior de tudo foram as bruxas. Como tantas apareceram em tão pouco tempo? Seriam as... coisas... além dos muros? Elas fizeram isso conosco? Homens e mulheres honestas e tementes ao Imperador, manifestando poderes profanos assim, do nada. Não importa que nos deram vantagem em combate diversas vezes, era heresia, e fui forçado a puni-los apropriadamente, diversas vezes".

Ele ouviu um sino tocar. O som percorreu os corredores da fortaleza, soando como algo distorcido. Deixou um zumbido em seus ouvidos, enquanto o cômodo à sua volta parecia brilhar.

A expressão de Dresk ficou ainda mais grave.

O que era aquilo?

Fechou os olhos e continuou a falar, as palavras atropelando as outras, na ânsia de serem ditas.

"Quando os alarmes soaram naquele dia, Deus-Imperador, corri com minha pistola e minha espada em punho, e meus guerreiros me seguindo, pois eu acreditava que o inimigo tinha rompido as muralhas. Ao invés disso, encontrei os xenos, cercados por soldados e por metade dos oficiais superiores. De onde vieram ninguém sabe, mas falavam o Alto Gótico com fluência, e solicitavam algum tipo de negociação. Esguios, altos e bem esquisitos, estranhas máscaras que pareciam mudar quando nós as olhávamos por muito tempo, e vestiam macacões preto e branco com padrões bizarros. Deus-Imperador, eu os arrasaria completamente e voltaria às muralhas, mas o Comandante... Ouvia os xenos. Acreditava em suas mentiras. Falavam no Caos como um inimigo em comum, em como os estranhos fenômenos psíquicos em nossas fileiras poderiam ser controlados, e com a ajuda deles, como era possível fortalecer as projeções dos astropatas e enviar uma mensagem através da distorção. Falaram de como um Tecnopadre poderia fortalecer o sinal de um equipamento de vox. Deixaram um grande cristal, e disseram que poderiam nos ensinar a ativá-lo. Que ele iria concentrar nossas... energias... e permitir que pedíssemos ajuda. Nos ofereceram esperança".

O zumbido estava ficando mais alto. Dresk estremeceu e travou as mandíbulas a fim de enfraquecê-lo, mas ele continuou, assim como a luz, que tomava a cela como um sinalizador tivesse sido aceso. Ele levantou e tocou suas fossas nasais, e seus dedos ficaram sujos de sangue.

Tinha de ser assim. Dresk avisara que os xenos não eram confiáveis, até tinha tentado atirar em um dos mascarados na esperança de provocar um confronto direto. Desejava salvar seus superiores da condenação forçando suas ações, mas antes que pudesse disparar, um labirinto colorido confundiu seus sentidos. A última coisa que percebeu foi a coronha de uma arma em sua têmpora.

Acordara naquela cela.

"Eles queriam esperança", soluçou, sentindo o gosto de sangue, ouvindo as preces se transformando em dolorosos lamentos. "Esperança que nem eu, nem os padres puderam dar. Queriam se sentir poderosos diante dos horrores, e os xenos se aproveitaram disso. Se aproveitaram deles".

Os lamentos se tornaram gritos, não de uma única voz, mas de centenas delas, um coral de condenados que penetrava em sua mente e repercutia no cristal, que crescia ainda mais. Por um momento, Dresk enxergou através dos olhos de outro, sendo assaltado por imagens fantasmagóricas de figuras cobertas de um fogo branco que saia de seus olhos e bocas, fluindo em direção ao cristal, que brilhava mais que uma estrela. "Aquela luz vai consumi-los", percebeu. Eles. Os demônios. Todos.

Todos, exceto os xenos, que desapareceram tão rapidamente quanto vieram, depois de deixar sua dádiva.

"Deus-Imperador, me perdoe", balbuciou Dresk, observando as torrentes de fogo branco fluírem além das muralhas para destruir os demônios adiante; ele viu o mesmo fogo dançar diante de seus lábios, e se espalhar ao longo de seus membros, como uma coroa.

"Deus... Imperador..." forçou as palavras como se pura energia psíquica percorresse através dele, queimando-o por dentro, assim como todos os seres vivos da fortaleza. Os gritos tomaram sua mente, até ele sentir-se como um saco de carne prestes a explodir. O fogo queimou sua carne, seus ossos, sua alma.

O Imperium ouviria as mensagens, percebeu enquanto queimava, enquanto o fogo psíquico consumia tudo e uma agonia insustentável irrompia através de cada fibra de seu corpo.

Era o que os xenos queriam o tempo todo.

O Imperium ouviria os gritos finais daquele mundo condenado. Por trás de tudo aquilo, sutil, mas inconfundível, eles ouviriam a gargalhada que Dresk ouvia em sua mente naquele momento. A gargalhada dos xenos que a todos massacraram.

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