A propósito de traduções

De Lucio Cardoso. Original aqui.


Diário Carioca, 02 de abril de 1944.

Ultimamente é grande moda falar mal de traduções, quer porque as traduções estejam em moda, quer porque realmente não valham nada. Ora, imagino que a maioria das pessoas que escrevem contra traduções, ignoram completamente o que é esse complicado mister. Poucos problemas existem tão difíceis quanto este de trazer para uma língua pouco maleável e de expressões reduzidas, obras que nos falam muitas vezes de coisas sutis e sentimentos que pela sua própria essência, são muitas vezes quase intraduzíveis.

Imagino com horror, por exemplo, o que será uma tradução das obras de Marcel Proust; o que já se fala com tanta insistência na versão para o português de "À la recherche du temps perdu", não posso imaginar esse heroico batalhador sem um vislumbre de incontida admiração e até mesmo inveja. Pois esta é uma tarefa que julgo acima das minhas forças. Na verdade, como transplantar para nossa língua aqueles períodos quilométricos, que muitas vezes transbordam através de duas e três páginas? Como impedir que os "ques" e os "comos" se atravanquem nas descrições exaustivas do telefone, do sorvete de Albertine, e da praia de Balbec?

Considerando bem, não é muito extraordinário constatar que, longe de possuir média ruim, nossas traduções, ao contrário, são boas, não digo ótimas, mas boas, feitas com certo respeito próprio às iniciativas ainda recentes e com evidentes sinais de tendência ao progresso e ao apuro - pois como tudo o mais, tradução se aprende a fazer, como romance e poesia. Não falo, é claro, dessa espécie de tradução de cordel que surge em quinze dias para aproveitar a publicidade de um romance feito por outra casa, comprometendo iniciativas sadias e trazendo a confusão ao público. É todo um capítulo a escrever, este da pirataria de várias das nossas casas editoras. Falo, é claro, de obras realmente traduzidas, com a responsabilidade de alguns nomes de evidente destaque.

Não é fácil, por exemplo, traduzir Dostoiévski do russo. Se na França, onde o movimento editorial é um dos maiores do mundo, é possível encontrar um tradutor especializado em Dostoiévski, Tolstói ou Tchecov, no Brasil seria quase impossível encontra uma pessoa de reconhecida envergadura que se dedicasse exclusivamente de um empreendimento desses. Além do mais, em obras onde o estilo não é qualidade primordial, não creio que uma tradução feita do francês possa comprometer definitivamente o romance traduzido. Não nos esqueçamos também de que algumas traduções francesas são as melhores do mundo, como as de Pierre Pascal, Jean Talva, Boris de Schloezer, etc.

Aliás, não somente da França, mas na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos, traduções têm feito o renome de muita gente. É sabido por exemplo, Maurice Betz é o melhor tradutor de Rilke para o francês. O nome de Constance Garnett é célebre como a tradutora clássica de Dostoiévski para o inglês, bem como o de Sidney Schiff é famoso pela sua tradução das obras de Proust para a mesma língua. São traduções definitivas diante da qual ninguém ousa mais repetir a façanha. temos em português um caso mais ou menos semelhante, isto é, alguém que dedicou sua existência inteira a traduzir as obras de Flaubert: João Barreira. Hoje fato sabido que estas traduções são de tal modo perfeitas, que em nada desmerecem o original. E no entanto, coisa curiosa, li há poucos dias que um escritor carioca ia fazer a versão das obras completas de Flaubert. É ousar demais.

Dos atuais tradutores, creio não ser possível esquecer o nome de um Amando Fontes, que nos deu uma tão honesta "Sonata a Kreutzer", nem os poemas de Rabindranath Tagore, admiravelmente traduzidos pelo sr. Abgar Renault, nem os livros habitualmente trabalhados pela sra. Raquel de Queiroz, cujo conhecimento dos segredos da tradução se alia ao seu talento de romancista, nem Monteiro Lobato, que há anos vem se aprimorando em traduções difíceis e cuidadas. Também discretos trabalhadores do gênero são os senhores Herman Lima, Costa Neves, Sodré Viana e Casimiro Fernandes. O sr. Oscar Mendes deu-nos não há muito uma "Daphne Adeane" que se era algum tanto pesada, mesmo assim estava muito acima da média das nossas traduções. Há empreendimentos ousados, como os que estão sendo atualmente tentados pela Livraria do Globo de Porto Alegre, de que não tomei ainda pleno conhecimento, mas cuja extensão admiro sem restrições, tais como a versão de "Guerra e Paz" de Tolstói, ou "Os Thibault", de Roger Martin du Gard. Ouço falar também numa edição completa da obra de Balzac, o que seria, sem a menor dúvida, um dos maiores empreendimentos editoriais já tentados no Brasil.

Neste terreno, não devemos esquecer o próximo lançamento das obras completas de Dostoiévski pela Livraria José Olímpio, inegavelmente um acontecimento marcante em nosso mercado literário. Ainda não tínhamos traduções conscienciosas dos grandes romances do autor russo, sendo todas elas truncadas, adaptadas de um português anacrônico ou resumidas aqui mesmo, conforme o interesse dos editores. Pela primeira vez, a par de versões integrais, encontraremos ilustrações de artistas de grande valor, tais como Axel de Leskochesk, ainda desconhecido para o público brasileiro, mas sem a menor dúvida um mestre na arte de gravar e ilustrar, dos mais competentes atualmente no mundo, não só pelos seus dons como também pelo seu conhecimento do "metier", sua capacidade e sua integridade profissional. Oswaldo Goeldi, este conhecido e admirado por toda gente. Santa Rosa, que se incumbiu de uma tarefa difícil como ilustrar "Crime e Castigo", Martha Schidrowitz e outros.

Com realizações desta natureza não é possível falar nem em fracasso, nem em desonestidade. Muito boa vontade, isto sim nem sempre plenamente compreendida pelos nossos eternos "críticos" em permanente crise de assunto. Mas isto felizmente já vai sendo percebido pelo grande público que sabe distinguir perfeitamente quais as traduções que lhe convém.

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