Dívida de Honra - Capítulo I - Fogo e Trovão

De Rachel Harrison. Originais aqui (ePub) e aqui (Mobi).

Com um ruidoso clique, a Comissária Severina Raine conectou um carregador cheio na pistola bolter. Era a quarta vez que substituía o carregador capaz de armazenar oito munições. Trinta e dois disparos realizados.

Seis deles para executar seus subordinados.

Raine lutara em inúmeros frontes no Conglomerados, quase sempre contra os Clarividentes, ou suas ramificações. Descobrira como eles corrompiam planetas inteiros com sussurros e falsas promessas. A forma como colocavam trabalhadores contra seus mestres, e guardas contra aqueles que deveriam proteger. Era o que os tornava tão perigosos. Quando combate-se os Clarividentes, combate-se a população daquele sistema. Escribas e soldados. Sacerdotes e pacificadores. Os pobres, os oprimidos, os ambiciosos e os incautos. Para aqueles que serviam ao seu lado, tal conhecimento era um fardo. Outros temiam descobrir-se incapazes de puxar o gatilho. A despeito das razões, logo se deparavam com o cano da pistola da comissária, Penitência. Assim como sua arma, Raine fora criada para julgar. Para o momento antes do golpe do martelo e da explosão de chamas. Ele compreendia o que significava puxar o gatilho, e o que aquilo a tornava. Ela não era guiada pela ira, ou pela maldade. Isto prejudicaria sua determinação, que era sempre a mesma, a despeito dos crimes.

Eliminar a fraqueza.

Raine ajoelhou-se e e arrancou as identificações do pescoço de Jona Veer. Elas não seriam mandadas de volta para Antar com aquelas pertencentes aos mártires. Seriam descartados assim que a luta em Laxus Secundus terminasse, e o nome do combatente logo seria esquecido por todos, exceto por ela, porque ela nunca esquecia dos mortos, honrados ou não.

"Comissária".

A voz era do Capitão Yure Hale, tão áspera quanto seu temperamento. O oficial da Companhia Cinza era alto, assim como a maioria dos antari. Três cicatrizes profundas marcavam sua face esquerda, da testa ao queixo; consideravam-no sortudo por ter mantido o olho intacto - a bênção de alguma curandeira, ou a sorte, pura e simplesmente. Raine não acreditava na sorte; Yure Hale sobrevivera da mesma forma que todos ali o fizeram.

Lutando com todas as suas forças.

"Novos indicadores de calor vindo da forja interna", disse ele.

Raine pôs no bolso o pingente de identificação de Veer, que uniu-se ruidosamente aos demais, levantou-se e observou a tela empoeirada do auspex trazido por Hale. Quando o regimento adentrou a fundição, há mais de seis horas, os níveis de calor eram baixíssimos, e agora estavam oscilantes como batimentos cardíacos.

"O que quer que os Clarividentes estejam fazendo, trouxeram um inferno consigo", disse Hale. "Kayd captou o vox inimigo".

"Um canal aberto?" 

"Sim, como se não se importassem se ouvíssemos".

"Algo relevante?", perguntou Raine.

Hale franziu o cenho, e tocou as cicatrizes. "Kayd reconheceu o idioma laxiano. Algo como 'ele se aproxima'". 

Apesar do calor do local, Raine sentiu um calafrio ao ouvir tais palavras. As instruções repassadas há dois dias foram claros. A fundição primária de Laxus Secundus era um valioso recurso, tática e logisticamente, e não apenas pelos super-tanques ali construídos, mas pelo que havia em suas forjas internas. O Alto Comando não revelou o propósito das máquinas que ela e os antari encontrariam ali, apenas que não deveriam cair nas mãos dos Clarividentes. Que sua utilização pelo inimigo seria catastrófico, não apenas pelo combate que se desenrolava no local, mas para todo o desenrolar da campanha.

"Estamos ficando sem tempo", disse Raine.

Hale assentiu. "E sem suporte. A Companhia Azul foi detida na abordagem do Portão Beta, e a Dourada ainda não chegou às forjas internas. Estou ordenando o avanço, antes que os Clarividentes enviem reforços, e nosso sangue derramado tenha sido em vão".

"Entendido, capitão", respondeu a comissária. "Não falharemos".

Hale olhou na direção do cadáver de Jona Veer. Raine o conhecia o bastante para saber o que sentia pela forma com que moveu os ombros e apertou os olhos. Hale estava decepcionado. Envergonhado em nome do garoto. Raine também sabia que, apesar da fraqueza de Veer, era difícil para o oficial aceitar julgamentos contra os seus homens.

"Algo mais?", perguntou Raine.

Hale tornou a encará-la. "Não, comissária. Definitivamente".

Então Hale retornou aos antari, atravessando apressado os corredores repletos de maquinário, transmitindo suas ordens. Eles tinham missões a cumprir, traidores a eliminar e máquinas a retomar.

Yuri Hale sabia que não haviam julgamentos a questionar.

*** 

Lydia Zane podia sentir a morte em cada parte de seu corpo. Doía da cabeça aos pés. Os Clarividentes estavam fazendo algo nas forjas que projetava uma grande sombra, algo que ecoava pelo immaterium como um grito. Sentia-se assim desde que desembracara em Laxus Secundus - a sombra da morte a alcançara. 

Igualzinho àquele maldito pássaro.

Estava parado ali, as garras presas à borda de uma viga. Completamente imóvel. Ela nem o vira piscar. Não grasnava, ou sacudia as penas. Apenas parava e observava.

Havia um símbolo pintado em sangue no pilar exatamente abaixo de onde o pássaro estava. O cheiro era inconfundível, mesmo com toda a fumaça ao redor. Uma espiral em volta de um olho fendido, a marca dos Clarividentes. As voltas do espiral eram perfeitamente desenhadas, e acompanhá-las deixava a respiração de Zane acelerada. Aquele que desenhara o símbolo jazia aos pés do pilar, vestido de andrajos e penas, a pele coberta por tatuagens metálicas. Era um do membros do grupo que perseguira Jona Veer pelos corredores. Zane o encontrara escondido entre os chassis dos tanques durante o tiroteio. Pensava estar escondido, mas ninguém escapava de Zane, porque ela não precisava de rastros, sons ou movimentos para localizar o alvo. Ela o encontrou na escuridão farejando seus pensamentos heréticos, e ali o encontrou, pintando a espiral e o olho fendido. 

E foi morto por ela, em seguida.

Zane segurou com mais força o cajado de madeira escura. O cristal psíquico em sua ponta vibrava. De vez em quando, porcas soltavam-se do pilar e se uniam aos objetos que flutuavam à volta dela. Ferramentas. Rebites e parafusos. Munições deflagradas. Pedaços de osso. Vagavam à sua volta, aleatoriamente. O chão tremia sob seus pés enquanto os painéis entortavam. Sentiu o gosto de sangue, que escorria sobre seus lábios. Sangue no pilar. Sangue que desenhara o olho pintado no centro da espiral, sempre atento. 

Igualzinho ao pássaro.

"Zane". 

Ela se virou, desviando a atenção do pássaro de olhos negros que nunca piscavam. A comissária Raine estava parada, pistola em punho, mas não estava apontada. Uma ameaça em potencial. Zane percebeu que não podia falar, como se seus lábios tivessem sido selados por todo aquele sangue. Os objetos flutuavam à sua volta como em uma tempestade, e relâmpagos fulguravam entre eles. Raine permaneceu firme.

"Controle", disse a comissária.

A pistola permaneceu imóvel, seu cano cilíndrico e escuro, como olho pintado com sangue. Como os olhos do pássaro. Como os olhos fixos de Raine.

"Controle", balbuciou Zane.

Mais sangue penetrara-lhe os lábios.

"Fale-me sobre a árvore", disse Raine.

"Sobre a árvore... A árvore cantora."

"E por que se chamava assim?", perguntou Raine.

Zane piscou. Conseguia vê-la quando fechava os olhos - a árvore no topo de um desfiladeiro, com as raízes curvadas sobre as bordas como as garras do pássaro sobre a viga. Os galhos esbranquiçados tentando alcançar o tempestuoso céu de Antar.

"Porque é onde íamos cantar para Ele na Terra. Porque era o mais próximo que podíamos ficar do céu". 

"E Ele falou com você", disse Raine.

"No farfalhar das folhas", respondeu Zane.

"E o que Ele disse?"

Zane sentiu a dor nos ossos diminuir. Os objetos à sua volta começaram a cair no chão.

"Que eu seria testada. E que eu não poderia falhar".

Os objetos metálicos caíam no chão, reverberando como trovões.

"Lydia Zane", continuou, concluindo os procedimentos. "Psyker Primaris, nível Épsilon, Décimo-primeiro Regimento de Fuzileiros de Antari".

Os cabos conectados ao escalpo da psyker clicaram ao esfriar. Zane limpou o sangue no rosto, deixando uma marca vermelha nas costas da mão.

"Perdão, comissária", disse, abaixando a cabeça. "É este lugar. A escuridão".

"Os Clarividentes?", perguntou Raine.

"Eu vejo suas sombras", respondeu Zane. "É diferente. As coisas estão mudando".

"Se você ver qualquer coisa, me avise", Raine disse.

Zane sabia que ela queria dizer "vislumbrar", não apenas "ver", o que soava como uma piada maldosa considerando o pássaro; ela via a criatura há meses, desde que percorrera os túneis de cristal em Gholl. Ela não falava do pássaro com ninguém, sobretudo com Raine, porque traria sua morte.

Porque Zane sabia que, como cada minuto de sua existência até então, o pássaro era só mais um teste, e ela não falharia.

O sargento Daven Wyck esperou que a comissária saísse em busca da feiticeira, então recolheu o rifle de Jona Veer. Sabia que não deveria fazer algo assim diante dela, melhor evitar ao máximo atrair atenção da comissária. Perto dele, o resto dos Selvagens vigiavam o perímetro da linha de montagem, vigiando os movimentos dos Clarividentes em meio as brumas. 

Cuidavam de seus rifles, trocavam suas baterias, e compartilhavam granadas e explosivos. Limpavam as lâminas sujas de sangue no uniforme. Veer não utilizou nenhum dos armamentos. Burro demais para atirar ou reagir. 

Mais ainda para ser descoberto.

"Sério, Dav?", disse Awd.

Wyck lançou um olhar intimidador para seu parceiro. "Ele não vai precisar mais disso, certo?" 

Awd pareceu sorrir, mas era porque as queimaduras esticavam-lhe a pele do rosto. Seus olhos definitivamente não pareciam sorrir.

"Você vai deixá-lo desarmado, sabendo para onde ele vai?", perguntou Awd.

Wyck observou o corpo de Verr e lembrou da forma com que o soldado falava, com o sotaque dos Vales. Wyck também crescera entre os lagos negros e as matas fechadas antes de ser recrutado para os Fuzileiros. Grande, pouco povoado. O sargento não conhecia Veer antes, e não fora diferente agora, mas eram conterrâneos. Mesmo que o outro fosse um covarde estúpido. Wyck parou e devolveu-lhe a faca. Awd estava certo, ele não podia deixar Veer desarmado quando o julgamento viesse.

"Pronto, agora é com ele responder pelos próprios atos".

"Como todos nós faremos ao morrer", assentiu Awd.

"Mas a morte precisa me pegar primeiro", retrucou Wyck.

O companheiro riu tanto que começou a tossir, fazendo um ruído desagradável. As cinzas que respirava por conta do flamer fazia seus pulmões chiarem daquele jeito.

"A morte precisa ter sorte", disse Awd. "Pra pegar uma alma como a sua".

Wyck sorriu, sem muito entusiasmo. Cerrou os punhos, que doíam após tantas lutas. Após cada gatilho pressionado, a cada golpe de faca. A cada soco desferido e tantos ossos quebrados. A dor não tomava-lhe o desejo de lutar, entretanto. Retalhar, atirar e matar. Até fazia-lhe querer mais.

"Wyck".

O sargento se virou e avistou o capitão, que notara o rifle e as granadas sobressalentes, mas nada disse. Wyck conhecia Hale há muito tempo, antes mesmo que alcançasse aquele posto. 

"Avançaremos pelo Portão", disse Hale. "Preciso dos Selvagens na dianteira".

A ordem não era inesperada. Wyck treinara bem seu pelotão, então Hale sempre os enviava na vanguarda.

"Sim, senhor. Eu não estaria em outra posição".

O oficial deu-lhe um tapinha no ombro e por um brevíssimo momento os instintos de Wyck eram de reagir como se tivesse sido atacado. Ele deliberadamente deteu o impulso de socar seu capitão, e permaneceu imóvel. Efeitos da adrenalina.

"Fogo e trovão", disse Hale. 

O sargento pensou em seu sangue fervente e nas pancadas de seu coração e o velho adágio pareceu engraçado. Precisou deter uma risada com a mesma dificuldade com a qual deteve o contragolpe instintivo.

"Fogo e trovão", respondeu.

Demorou mais uma hora até que Raine e os antari conseguissem atravessar a linha de produção até os salões de fundição; aquelas câmaras colossais eram o coração do complexo, e o caminho mais rápido até as forjas e o Portão Delta além destas. Assim como toda a Forja Primária, a fundição estava em pleno funcionamento a despeito do conflito que explodia dentro do complexo. Em volta de Raine, as máquinas convulsionavam e rugiam; acima de suas cabeças, grandes reservatórios de aço derretido eram erguidos e despejados dentro dos moldes abaixo, através de guindastes. Turíbulos oscilavam sobre os moldes e um escravo querubim lançava cinzas rituais, de acordo com a programação estabelecida antes da guerra. As placas metálicas seguiam a linha de produção, sendo batidas, temperadas e resfriadas por jatos de água suja, preenchendo o local com fumaça, vapor e com aromas de indústria.

Para a comissária, pareciam que estavam atravessando o inferno. Sentia falta dos oceanos gélidos de Gloam, onde fora treinada. Das roupas endurecidas pelas geada, e do vapor de sua respiração.

A fundição estava tomada por Clarividentes escondidos, em sua maioria rebeldes juramentados e traidores vestindo uniforme azul e cinza, adornado com amuletos heréticos - pedaços de espelhos presos em barbante, penas cravadas na pele, e a espiral vermelha. Os demais eram apóstatas, uma combinação de trabalhadores do manufactorum, técnicos e soldados desertores, que substituíam suas antigas bandeiras pelas novos símbolos e tatuagens. Raine não sabia dizer o que a enojava mais - a despeito do tipo de traição, teriam o mesmo destino.

Morte.

"Não deixem nenhum deles vivo!", gritou enquanto engajava em combate junto aos antari.

Um dos Clarividentes surgira em meio à bruma. Olhos completamente negros, dentes serrilhados, amuletos heréticos sobre sua armadura balística e uma pesada espada de duas mãos que parecia engolfar toda a luz presente. Raine esquivou de seu movimento, fazendo com que a grande lâmina se cravasse no chão metálico ao invés de decapitá-la. A espada ficaria imóvel por alguns segundos.

Era o bastante para Raine.

Cortou o Clarividente de baixo para cima com um golpe de sua lâmina energizada. O corpo do inimigo nem alcançara o chão, e a comissária já disparava contra outro herege, que explodiu em sangue. Mas haviam mais deles. Dezenas. Hale estava ao lado dela, pistola em punho. Um modelo mais pesado, com palavras sagradas gravadas em seu punho. Uma das mangas do capitão estava rasgada, ostentando a pele cauterizada por disparos de las; sua armadura estava marcada por inúmeros golpes de espada.

"Eles estão diferentes", disse o capitão, ofegante. "Sempre foram numerosos e combativos, mas há algo além disso. Estão bem equipados. Organizados".

Raine disparava a pistola nos inimigos que recuavam e escondiam-se entre o maquinário. Faziam-no de forma organizada, sob a fumaça. Alguns carregavam escudos, dando cobertura, e atrás deles formava-se uma linha defensiva móvel. Em Drast, lutavam como se não tivessem mentes, até que não lhes restasse forças. Trocavam os rifles pelas facas, porque se importavam mais em derramar sangue do que em sobreviver. Eram perigosos, mas eram animalescos, e indisciplinados. As palavras de Zane ecoaram em seus ouvidos.

As coisas estão mudando.

"Você está certo", ela disse a Hale. "Mas os mataremos do mesmo jeito".

Hale assentiu, e ativou o canal de vox da companhia. "Avançar com todos os pelotões. Vamos nos aproveitar da retirada!"

Raine ergueu a espada, e a água que jorrava das máquinas chiou em contato com a lâmina energizada da Crepúsculo. "Mate-os em nome do Imperador!", gritou.

Toda a Companhia Cinzenta exultou em resposta. Os Cervos, os Serpentes da Névoa, os Falcões Ardentes. Os que gritaram mais alto estavam bem ao lado dela, na vanguarda. Os Selvagens de Wyck lideravam a carga, como sempre. Hale usava Wyck como o gume de sua espada, porque era naquilo que o sargento era bom. 

"Yulia!", gritou Wyck. "Livre-se daqueles escudos!"

Yulia Crys sorriu e sacou o lança-granadas. Raine abrigou-se nas sombras de uma das máquinas quando o disparo foi feito. O barulho era como o de um trovão, uma série de rápidas pancadas que lançou dezenas de granadas em meio aos Clarividentes, próximas aos escudos. Detonaram quase que imediatamente. A comissária não pôde ver o dano causado sob tanto fogo e bruma, mas ouvira o ruído de armas e ossos estilhaçados, os gritos e a queda dos estilhaços perto dela.

"Que escudos, sargento?", gritou Crys.

Wyck gargalhou. Um som desagradável.

"Continuem avançando!", gritou Raine.

Ela respirou profundamente, sendo invadida pelos sabores de cinzas, fumaça e sangue. Os Clarividentes não derrubados pelas granadas agora fugiam, desordenados. Raine disparou Penitência duas vezes, e dois deles caíram. Os Selvagens iluminaram o local com seus disparos de las; o jogo virara, e o inimigo estava hesitando. Morrendo. Então a comissária foi atingida por um disparo de alto calibre, que deixou uma marca do tamanho de um punho em sua placa peitoral, arrancou-lhe o ar dos pulmões e quebrou-lhe qualquer coisa em seu tórax, arruinando sua pontaria. Sua visão ficou confusa, mas ela foi capaz de avistar aquele que disparara. Alto e esguio, usando uniforme azul-cinza, e uma gema no lugar de um dos olhos. Aquela pedra era certamente um indicativo de posto entre eles.

Ele apontou sua escopeta em sua direção e sorriu. Raine ergueu a pistola, mas antes que pudesse pressionar o gatilho, Wyck se jogou contra o inimigo, derrubando-o. Ela ouviu a escopeta disparar. Ouviu Wyck gargalhando. Tentou respirar apesar da agonia em fazê-lo. Os Selvagens tinham eliminado ou afugentado seus inimigos. A comissária arrastou-se até onde Wyck estava ajoelhado. O Clarividente sob o sargento tinha a garganta rompida e jorrava sangue por todo o assoalho. 

"Muito lento", disse Wyck. "Muito, muito lento".

"Chega", disse Raine. "De pé".

Ele olhou para ela. Por um momento, seus olhos cinzentos não a reconheceram. Aliás, nem pareciam cinzentos, estando completamente tomados pelo negro das pupilas. Então o sargento piscou e respirou fundo.

"Chega", repetiu, levantando-se. "Sim, Comissária".

Sua voz era calma e comedida, assim como a formalidade em respondê-la. Wyck costumava ser obediente e temperante quando observado.

"Ele disse algo", prosseguiu. "Disse que não podemos matar as vidas que criarão aqui".

As palavras, e seu significado reviraram o estômago de Raine. Ele sabia do que os Clarividentes eram capazes. Testemunhara em Gholl, Drast, e em todos os planetas antes destes. Devastação e profanação. Populações inteiras sacrificadas em rituais. Sangue derramado massivamente, em nome de seus falsos profetas.

E agora pretendiam criar vida.

Quer fossem soldados, ou escravos, ou coisa pior, ela não o permitiria.

"O que quer que pretendam, iremos detê-los. A qualquer custo".

Raine então pensou nas máquinas que os antari foram incumbidos de recuperara. Aquelas que causariam uma catástrofe se o inimigo fossem capazes de utilizar.

Aqui, e em todo o teatro de operações.

Wyck virou-se em direção da passagem à frente, para a névoa que encobrira a debandada inimiga.

"Tem alguma coisa vindo", disse o sargento. "Algo pesado".

Raine apurou seus ouvidos, tentando abstrair o som das máquinas, então também ouviu. Pegadas pesadas.

"Preparem-se!", gritou.

O resto da companhia chegara àquela altura. Buscaram toda a cobertura possível por trás das máquinas de fundição, e recarregaram rifles e pistolas. A água que jorrava do maquinário escorria pela borda do quepe de Raine, misturando-se com o suor em seu rosto. O vapor tomava toda a passagem como neblina sobre o oceano.

Então surgiram três figuras blindadas, bem mais alta que o maior dos antari. Tinham cabeças abobadadas e armas pesadas no lugar dos punhos. Lança-chamas montados sobre os ombros. Os autômatos kastelan não tinham pintura alguma sobre a carapaça de aço, exceto pela grande espiral vermelha em suas cabeças, com o olho fendido no meio. Com eles, surgira outra figura, humana apenas na forma, cujo manto negro escorria óleo. Mecatentáculos se agitavam às suas costas. O tecnopadre se voltou para Raine e os antari, e a tela que cobria-lhe a boca emitiu um som mecânico.

"Falcões Ardentes!", gritou o Capitão Hale.

Todos os esquadrões dos Fuzileiros de Antari recebem nomes de lendas locais, que Raine aprendeu desde que se juntou ao regimento. Andren Fel disse-lhe que o falcão ardente iluminava o céu noturno com estrelas - incêndios que provocava com o bater de suas asas.

A comissária não podia pensar em um nome mais apropriado para Kasia Elys e seu pelotão de armas especiais. Estavam fortemente protegidos com placas sobre braços e pernas, e os capacetes eram equipados com visores. Os Falcões se posicionaram e disparam armas de plasma, prontos para acender novas estrelas.

"Queime-os", rostou Elys.

O pelotão disparou as armas ao mesmo tempo em que os kastelans o fizeram com os lançadores fosfóricos. Uma luz branca se espalhou pelo ambiente, e mesmo com a visibilidade prejudicada, Raine disparou na direção dos autômatos e do tecnopadre que os controlava. 

Um dos Cervos foi atingido, mas não se sabia quem pois estava em chamas. Apenas corria às cegas na direção de seus companheiros. Raine disparou no soldado para impedi-lo de atingir os demais.

Um dos kastelans caiu de joelhos, convulsionando em meio aos vapores de plasma. O tecnopadre emitiu sons mecânicos, altos como gritos, e os outros dois servos apontaram seus canhões para Elys e seus companheiros, que continuaram atirando, procurando cobertura. Acertaram, mas não derrubaram os autômatos, que por sua vez transformaram-lhes em estrelas incandescentes. Raine não tinha balas para aplacar-lhes a agonia.

Sua balas eram para o tecnopadre.

"Zane!", gritou a comissária.

Não havia como a psyker ouví-la com todo o barulho, mas Zane não precisava dos ouvidos.

"Destrua os kastelans!", prosseguiu Raine.

Lydia Zane atravessou a tormenta enquanto dezenas de aliados caíam no confronto contra as máquinas. Um dos autômatos avançou em sua direção, apontando o lança-chamas montado sobre os ombros. A psyker ergueu uma das mãos quando o inimigo lançou-lhe um jato de promécio que derreteria-lhe a carne, defletindo as chamas de volta em um arco ascendente. O impacto contra o escudo telecinético deu-lhe a sensação de ter a mente cauterizada. Os cabos conectados ao seu crânio rangeram, e o chão sob seus pés tremeu. O kastelan, agora em chamas, avançou sobre ela com seu gigantesco punho energizado, e por um instante a psyker pensou ter sentido pena daquela coisa, criada para receber ordens, e jamais questioná-las. Criada para a matança. Pôde ver o próprio reflexo no visor do autômato - a pele pálida, o nariz sangrando, os lampejos elétricos precorrendo os conectores sob seu escalpo.

"Morra", disse Zane, fazendo um gesto brusco com a mão.

Parafusos se soltaram, soldas se romperam e o robô se desfez quase que instantaneamente. O mesmo aconteceu com as placas metálicas no piso, e os cabos elétricos, dezenas de metros dali, convulsionando e partindo. A onda de choque atingiu alguns de seus aliados, quebrando-lhes os ossos. À sua volta, os gritos, a instabilidade do mundo e o tempo que parecia fluir em câmera lenta. Queria que tudo aquilo parasse quando fechasse os olhos, mas isso não aconteceria, sobretudo porque tinha discos prateados no lugar dos originais. Veria fogo e morte de qualquer forma.

É um teste, pensou. E eu não falharei.

Com um grito, recuperou o foco, e voltou a atenção ao último kastelan e seu mestre. O tecnopadre erguia lentamente sua pistola gama na direção de Raine. A arma da comissária moveu-se em reação, mas mesmo alguém rápido como Raine seria transformado em cinzas se o inimigo disparasse. Lydia não se importava com a comissária; não era como um cão, leal e amorosa à sua senhora, mas uma besta enjaulada, amordaçada, vigiada e julgada por Raine. A psyker não admitiria, mas às vezes sentia-se grata por ter uma carcereira com tamanha firmeza.

Ergueu a mão e cerrou-lhe em punho assim que o sacerdote tocou o gatilho da pistola. Não apenas desmontou a arma, mas parte o braço do usuário, que guinchou e recuou. O último robô cambaleou sobre suas pernas quebradas, obstinado em proteger o mestre. Zane aplicou-lhe uma força invisível que esmagou-lhe as juntas e finalmente o derrubou. Exausta Lydia caiu de joelhos, a eletricidade percorrendo-lhe os cabos do crânio e por entre os dentes. 

Em Gloam, onde Raine foi treinada, faziam-na correr por passarelas sobre o oceano, placas de metal parafusado, salpicadas de água do mar ou cobertas de gelo, quando no inverno. O segredo era correr rápida e decididamente. Duvidar de si mesmo te mandaria para o fundo do oceano. Raine usou os pés da mesma forma quando saltou sobre a carcaça do kastelan e disparou as três últimas munições de sua pistola bolter. Todas atingiram o tecnopadre. Tórax, garganta, cabeça. Caiu, convulsionando, seus tentáculos tentando alcançá-la. Com a pistola descarregada, a comissária sacou o sabre. Foi atingida no rosto e no braço antes que pudesse cortar os mecatentáculos e cravar a lâmina energizada da Crepúsculo no peito do inimigo, que demorou um pouco para parar de se debater.

Respirou fundo o ar carregado de cinzas e óleos. Os Clarividentes tinham desaparecido na neblina, escondidos em meio ao maquinário, entre suas tropas e a forja adiante.

Raine conectou um novo carregador na pistola. Apenas dois lhe restavam. 

"Sem trégua! Sem misericórdia!', gritou.

À sua volta, os antari gritaram e seguiram em frente.

Wyck encostou-se contra uma dos equipamentos de fundição. Aos seus pés, um Clarividente recusava-se a morrer, derramando sangue lentamente sobre o solo. O cheiro entorpeceu o sargento quando limpou a faca na perna da calça. Enxergava tudo embaçado à distância. A máquina vibrando às suas costas. Os disparos de las ecoando no teto.

E o inimigo no chão, engasgando com os próprios fluidos.

Wyck piscou os olhos e olhou em volta, assegurando-se estar só antes de enfiar a mão no bolso do cinto e remover um pequeno frasco acoplado a um auto-injetor. Rompeu o selo com seu polegar e empurrou a agulha em seu braço, através do uniforme. O ímpeto veio rapidamente, como de costume, iluminando-o de dentro pra fora. Os sons passaram de sussurros para gritos, e todo o resto voltou à normalidade. 

Wyck largou a seringa e a esmagou com a bota.

"O caminho está livre. Continuem", disse pelo vox. 

Os Selvagens se adiantaram pela passagem tomada por escuridão e fumaça, e seus coletes cinzentos estavam cobertos por cinzas e sangue.

"Não gosto disso, sargento. Vamos sair daqui", disse Crys.

A engenheira de combate girava a cabeça para ambos os lados tentando compensar a surdez parcial do ouvido esquerdo. Crys era mais alta que o sargento, e tão corpulenta entre os ombros que o colete balístico padrão não cabia-lhe. Tinha o lançador de granadas às costas, e em suas mãos, uma pistola. Modificados, como ela costumava fazer com todo seu equipamento. O correto seria pedir permissão para isto, mas Wyck sabia o que as armas podiam fazer. O compartimento e os cabos montados no tambor do lança-granadas aumentavam sua rotação, permitindo dispará-lo em modo automático. 

Era de se surpreender que Yulia Crys não fosse surda dos dois ouvidos. 

"Nós sempre saímos, é nisso que somos bons", respondeu Wyck.

Crys deu de ombros, mas permaneceu cautelosa. Ela tinha um ponto, estavam bem no meio de um labirinto de máquinas, provavelmente isolados do restante da companhia, mas Wyck estava perseguindo os Clarividentes e não pararia até retalhar todos eles.

O sargento fez uma parada, acompanhando um som que captara mesmo com o tiroteio e as máquinas. O som de botas sobre metal. Virou uma esquina e seguiu por uma série de degraus ascendentes, alcançando o topo de uma passarela contendo maçaricos de plasma cortando grandes placas de aço. Prosseguiu com o pelotão, passando pelos servitors conectados ao maquinário. Bastante cobertura, para aqueles que a buscassem. Faíscas saltavam das máquinas, e desapareciam no miasma que ali se espalhava.

Isso não é nada bom, pensou Wyck.

Em suas estações de trabalho, servitors operavam os maçaricos com movimentos convulsivos, indiferentes à passagem de Wyck. Foram criados apenas para cortar metal, e nada além. Os dedos do sargento roçavam o gatilho, inquietos sob efeito dos stimms.

Um ruído. Um som inaudível que ele não perceberia se seu cérebro não estivesse tão frenético. 

Um dos Clarividentes saltara da alcova à esquerda. Sem carapaças, ou colete balístico. Vestindo um macacão e armado com uma enorme marreta, atacou Wyck, mas era muito lento. O soldado desviou do golpe e chutou o ventre do sujeito, desequilibrando-o. Acertou-lhe três tiros de las antes que pudesse levantar. 

Mais surgiram, deixando os cubículos, ou saltando das vigas acima. Uma dúzia, mais ou menos, gritando qualquer coisa na língua laxiana. Dois deles caíram antes mesmo de sacar as armas, e tão logo tentaram respirar, sem sucesso, um terceiro tinha a faca de Wyck cravada no peito. O sargento tentou livrar a lâmina, mas o Clarividente não permitiu; ao invés, cuspiu-lhe sangue e se lançou sobre ele, cravando-lhe uma lâmina cega no colete balístico. A faca não o sargento, que piscando por conta do sangue sobre os olhos, não pôde conter uma risada.

"Acha que pode me cortar?"

Cortou o inimigo em resposta, primeiro os braços instintivamente erguidos, seguido do pescoço, quando furou-lhe o bloqueio. Mais sangue em seu rosto. O coração palpitante, tão alto quanto os tiros e o rugido do flamer de Awd, que dava desfecho ao conflito.

"Sou um selvagem, e nossos golpes sempre matam!"

"Dav".

Por um momento, Wyck pensou ter ouvido a voz de Raf. Isso sempre acontecia.

"Dav".

Wyck piscou e balançou a cabeça. Raf estava morto há mais de uma década. Julgado e morto há muito tempo. Ele se virou e viu Awd encarando-o. Os outros se reposicionavam pela plataforma, procurando fugitivos ou armadilhas.

"Quê?", perguntou o sargento.

"Esses caras", disse Awd, lenta e cautelosamente. "Eu não acho que sejam Clarividentes".

O sargento riu. "Do que você está falando?"

Ele olhou para o cadáver aos seus pés. O sangue se espalhara como um lago negro. Ele percebeu que o homem não tinha os cortes no rosto, ou arrancara suas insígnias. Não usava espelhos ou penas, e seu uniforme era fornecido pelo Munitorum. A única marca que ostentava era o número de série no pescoço. Ocorreu-lhe que a faca cega que o golpeara era do tipo que se usava para abrir os painéis das máquinas.

"Eles estavam em território hostil, e se jogaram em nós..."

"Encontrei isso num deles", respondeu Awd, e jogou algo para Wyck. Um objeto prateado. Não era prata, mas latão, toscamente entalhado.

Um medalhão no formato da aquila.

As batidas do coração de Wyck descompassaram. Em sua mente, ouvia as palavras de Raf, em tempos idos, os olhos cinzentos tomados pelo horror. 

O que você fez, Dav?

A resposta era a mesma, ontem e hoje. Algo imperdoável.

Wyck piscou e limpou a garganta. "Vocês sabem como eles agem. Os Clarividentes recrutam qualquer um, mesmo que não se pareçam com eles. Fizeram isso em Gholl. Em Hyxx também. Até os padres, lembram?"

"Eu lembro. Jamais me esquecerei, mesmo quando estiver morto", respondeu Awd.

"Onde quer que eles vão, as pessoas vão virar a casaca por eles. É assim que acontece."

Wyck guardou o pingente no bolso próximo ao de suas seringas.

"Eu sei", retrucou Awd. "Mas-"

O sargento deu-lhe um olhar como o de antes, e o soldado silenciou.

"É assim mesmo. Vamos em frente".

"Sim, senhor, sargento".

Wyck olhou mais uma vez para o cadáver antes de acompanhar Awd. Para a faca sem gume e para a grande poça de sangue. Para o medalhão da aquila brilhando no pescoço do homem.

Sabia que teria muito a responder no momento em que a morte o pegasse. 

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